quinta-feira, abril 28, 2011

A água do rio flui sempre, sem cessar. Flui rápida, não pára um só instante e se vai. Seu murmúrio evoca em mim o eco do tempo.

A água do tempo brilha no leito do Universo, sempre correndo, fluindo. Pedras, árvores, casas e cidades também fluem vagarosamente nesta correnteza, assim como os seres. tudo isso pode parecer imutável, mas na verdade essa idéia não passa de uma ilusão.

Apenas nós, seres humanos, acreditamos erroneamente que tudo é imutável. Esforçamo-nos para não sermos levados pela correnteza e lamentamos por tudo que se vai. No entanto, mesmo sofrendo e desdobrando-nos, caindo sete vezes e nos levantando oito, não há como parar o fluir, que envolve também nossa dor e nossa luta.

Ao invés disso, é melhor ver as coisas como são e nos juntarmos a essa correnteza, com suavidade. Apenas assim poderemos encontrar prazer na fugacidade das coisas, uma vez que é justamente essa fugacidade que tece as mais diversas figuras na tapeçaria da vida.

Quando o shijo [três toques do sino] anuncia o início do zazen [meditação sentada] e tudo está em silêncio, a voz do rio é alta e clara. Durante a caminhada kin'hin [meditação andando], seu som se atenua. E ao final da meditação, ao som do chukai [sinal do término da meditação], a voz do vale desaparece completamente. É muito interessante. Por que será? O som do rio do vale aumenta, diminui, desaparece, mas não é o rio que muda. quando as ondas de nossa mente se acalmam, podemos ouvir o sermão sem palavras da água, das gotas, da erva, das árvores, dos seixos e das montanhas nos ensinando a transitoriedade de todas as coisas. Quando surgem pensamentos, todos se calam. Na verdade, eles não deixam de falar; nós é que perdemos a capacidade de ouvi-los.

O que acontece com nossos ouvidos também acontece com nossos olhos. Quando o olhar da mente é límpido, vemos tudo como realmente é, de modo natural. Mas assim que os olhos se distraem com objetos externos, não vemos mais. Perdemos a capacidade de ver corretamente. Sons e imagens nos atacam, nos arrastam, nos puxam. Coisas que deveríamos ver, não vemos. Coisas que deveríamos ouvir, não ouvimos. Não é assim?

Se escutarmos o rio sem atenção, a água que corre parece ter um ritmo constante e ininterrupto. Entretanto, nenhuma gora d'água passa duas vezes sobre a mesma pedra. Não é nunca a mesma gota que forma o leito do rio ou o murmúrio da correnteza. A imutabilidade é apenas uma ilusão dos olhos e dos ouvidos humanos. Uma vez que tenha passado, a água não corre nunca mais no mesmo ponto do rio.

A vida humana não é diferente. Acreditar que ontem é igual a hoje é resultado de nossa ignorância e insensibilidade. Não nossas mentes e nossos olhos deludidos que vêem o passado igual ao presente. Os olhos iluminados vêem claramente a imagem das coisas em eterno movimento e reconhecem que um instante é diferente de qualquer outro.

Escrito durante a participação no Nehan Sesshin (retiro em memória à morte de Shakyamuni Buddha, realizado todos os anos em fevereiro) no Mosteiro Sede de Eihei-ji, em Fukui-ken.

(Shundo Aoyama Rôshi. Para uma pessoa bonita: Contos de uma mestra zen. Prefácio da Monja
Coen, traduzido por Tomoko Ueno. São Paulo: Palas Athena / Zen do Brasil, 2002. Pág. 17-18.)

1 comentários:

Lucas Lopes Valadares disse...

"Quando o olhar da mente é límpido, vemos tudo como realmente é, de modo natural. Mas assim que os olhos se distraem com objetos externos, não vemos mais. Perdemos a capacidade de ver corretamente. Sons e imagens nos atacam, nos arrastam, nos puxam. Coisas que deveríamos ver, não vemos. Coisas que deveríamos ouvir, não ouvimos"
Não tenho mais palavras!
Parabéns pela postagem!

www.aliradeorfeu.blogspot.com

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"Tenho amigos tão bonitos. Ninguém suspeita, mas sou uma pessoa muito rica."
Caio Fernando Abreu